segunda-feira, 14 de abril de 2008

A Guerra do Contestado



Uma das maiores e mais sangrentas revoltas camponesas da História da Humanidade aconteceu em Santa Catarina.
No dia 22 de outubro de 1912, na cidade de Irani, tropas paranaenses comandadas pelo coronel João Gualberto travaram um violento combate com um grupo de sertanejos sem-terra, liderados pelo “monge” José Maria que pregava a volta da Monarquia e a construção de uma sociedade igualitária. O conflito, que se alastrou por dezenas de cidades catarinenses, durou quatro anos e causou a morte de cerca de 20 mil pessoas.
Vários acontecimentos produziram este levante popular: a disputa de limites entre Paraná e Santa Catarina; a construção da estrada de ferro São Paulo - Rio Grande, pela poderosa multinacional Brazil Railway pertencente ao Sindicato Farquhar; a instalação da segunda maior madeireira da América, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company Inc.
Este conjunto de fatores convergia para uma mesma direção: a expulsão dos camponeses, habitantes nativos da região, a ocupação de suas terras e a exploração das ricas reservas de pinheiro araucária. Nesse período praticou-se a primeira devastação ecológica industrialmente planejada na América Latina com a derrubada de mais de 2 milhões de pinheiros e outras madeiras nobres.

TESTE MILITAR
A Guerra do Contestado mobilizou dois terços do Exército Brasileiro de então, milícias estaduais e forças paramilitares. Foi o grande teste do exército moderno: pela primeira vez, na América Latina, utilizaram-se aviões com fins militares, bombas de fragmentação e aprimoradas técnicas de contra-insurgência, só esboçadas na Guerra de Canudos.
Os camponeses, profundos conhecedores do sertão catarinense e movidos por uma fé mística baseada na imortalidade, resistiram ferozmente até a sua derrota utilizando eficientes técnicas de guerrilha. Além da luta pela terra, messianismo, sebastianismo e desejos de volta à Monarquia permeavam o imaginário dos sertanejos.

A Região Do Contestado

Chamou-se Contestado a área de 40 mil quilômetros quadrados disputada por Santa Catarina e Paraná. Além de terras, havia em jogo grandes florestas de madeiras nobres e imensos ervais nativos, que produziam erva-mate.
Santa Catarina já havia ganho três disputas judiciais no Supremo, sem nunca ver cumprida suas determinações.
Poucos moradores e fazendeiros tinham documentação das terras que ocupavam e exploravam. Esta situação começou a mudar no início da República, com os “coronéis” legalizando grandes extensões em seu nome e, depois, com a chegada da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, cujos construtores ganharam 15 quilômetros de cada lado da ferrovia para explorar madeira e erva-mate. Muitos moradores foram progressivamente desalojados, à força, durante anos.
Em 1910, o Sindicato Farqhuar, que construia a ferrovia, inaugurou a segunda maior madeireiro da América em Três Barras, para explorar suas concessões. Em seguida, passou também a vender terras - na maioria das vezes ocupadas por sertanejos brasileiros - para estrangeiros de diversas procedências.
A Southern Brazil Lumber & Colonization Co. Inc., domina o sertão. Dispõe de um exército de 200 homens para pressionar quem fosse preciso. Começa a formar-se o cenário da guerra.

A Madeireira Lumber

Além de construir a São Paulo-Rio Grande, Percival Farquhar montou a Southern Brazil Lumber & Colonization Co. Inc., em Três Barras/Santa Catarina, com um capital inicial de 100 mil dólares logo ampliado para 12 milhões de dólares. É o maior empreendimento econômico no Sul. A cidade recebia gente do mundo inteiro. Madeireira e depois colonizadora, a Lumber promoveu uma devastação ecológica inédita até então. Dois anos depois de sua inauguração em 1910, dispunha de uma reserva de mais de 2 milhões de pinheiros (araucária angustifólia), sem contar imbúias, cedros e outras madeiras nobres.
A grande madeireira serrava 300 metros cúbicos por dia com sistemas totalmente automatizados empregando mão de obra predominantemente estrangeira. Construía ramais ferroviários no meio da mata de onde ia arrancando as árvores com guindaste, de maneira célere. Conseguiu que o governo brasileiro construísse um ramal gigante ligando a madeireira ao litoral - a estrada de ferro Porto União-São Francisco - por onde exportava madeira e erva-mate.
A Lumber operou por 40 anos até que fosse literalmente abandonada pelos americanos e sua área incorporada ao Exército Brasileiro. Não deixou um único exemplar das magníficas espécies nativas encontradas nas áreas onde atuou.
Como prova do seu poderio, a Lumber, mesmo em terras contestadas por dois estados, estabelece Três Barras como município pertencente ao Paraná. A cidade torna-se catarinense com a assinatura do acordo de fronteiras em 1917, no final da guerra.

A Estrada de Ferro

A estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande foi construída para integrar econômica e geograficamente o sul do Brasil. As obras do trecho em terras do meio-oeste catarinense foram entregues ao poderoso Sindicato Farquhar, que além de ter construído a ferrovia Madeira-Mamoré operava serviços de infra-estrutura como portos, energia elétrica, transportes e comunicações de Porto Alegre a Belém do Pará.
Com um lobista do porte de Rui Barbosa, seu advogado, o Sindicato de propriedade do norte-americano Percival Farquhar conseguiu uma inédita forma de pagamento: recebia em dinheiro e mais 15 quilômetros de cada lado da ferrovia. Com uma força armada particular, ocupou essas terras expulsando delas sertanejos brasileiros, seus primeiros moradores. A ferrovia foi suporte fundamental para a criação da Southern Brazil Lumber & Colonization Co. Inc., grande madeireira e colonizadora de terras.
A madeira arrancada da região era transportada via estrada de ferro para os portos do sul. Para isso também foi construído o ramal Porto União-São Francisco do Sul. Durante a Guerra do Contestado a estrada de ferro transportou soldados, armas e munição do Exército Brasileiro que protegeu interesses do Sindicato Farquhar atacando populações nativas.
A empresa norte americana dispensou, de uma só vez em plena guerra, mais de mil operários que vagaram pela região engrossando as fileiras dos jagunços revoltados.

Os Líderes Rebeldes


Durante os quatro anos que durou a Guerra do Contestado morreram cerca de 20 mil pessoas - equivalente a um terço da população de Santa Catarina, à época. E também milhares de militares.
O movimento revoltoso teve, ao longo desses anos, várias lideranças que comandaram com êxito muitos combates e ofensivas. Entre eles Venuto Baiano, Chico Ventura, Aleixo Gonçalves, Antonio Tavares, Adeodato Ramos, Bonifácio Papudo e Alemãozinho (que traiu o movimento). Atuavam sob a forma de guerrilha, conseguiam infiltrar espiões regularmente - os bombeiros - nas forças que os combatiam, lutavam com revólveres, espingardas e no corpo a corpo com facões de pau feitos de madeira duríssima da região.
Apoiados numa forte crença de ressurreição e retorno nos exércitos encantados de São Sebastião, eram ferozes e destemidos em combate.
Logo os combatentes sertanejos foram chamados de pelados e seus opressores de peludos. Os pelados formaram tropas de elite nos redutos, os Pares de França, inspirados nas histórias do rei Carlos Magno. Queriam viver numa terra santa onde “tudo era irmão e irmã” e sob o signo de que “quem tem moe, quem não tem moe também, ficando no fim todos iguais”.
Conseguiram forças para uma resistência inédita na história e só foram subjugados pela fome e extermínio sistemático nos redutos invadidos com a degola dos prisioneiros.
Tinham um confuso discurso de fundar uma monarquia, na verdade um sonho de voltar aos tempos em que a vida havia sido mais digna e generosa.

O Exército



<Capitão Matos Costa

Para derrotar os revoltosos do Contestado foram necessárias 13 expedições militares, durante quatro anos. No conflito atuaram Euclides Figueiredo, Eurico Gaspar Dutra, Herique Teixeira Lott entre outros oficiais que influenciaram diretamente a vida brasileira. Praticaram diversos procedimentos de contra-insurgência e aniquilamento das populações rebeladas.
Pela primeira vez foram empregados aviões com fins militares na América Latina e bombas de fragmentação contra combatentes. Mas também foram usadas velhas práticas como a eliminação sistemática de prisioneiros e a degola.
A grande companhia Lumber mereceu atenção especial do Exército que atuou decididamente em sua defesa. Casos de corrupção como o desvio de fardamento, alimentos e munição das tropas foram denunciados no Clube Militar, no Rio de Janeiro e nunca apurados.
A campanha foi encerrada oficialmente depois de um longo cerco aos revoltosos, cortando-lhes suprimentos e matando-os de fome. Depois de terminada a guerra, tropas continuaram perseguindo os vencidos no sertão matando e destruindo suas casas.
O capitão Matos Costa, morto na Guerra, foi um dos raros a compreender o que se passava de verdade no sertão. Afirmava: “A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança”.

Os Monges


<Monge João Maria (Anastás Marcaf), que encantou-se no Morro do Taió

A região do Contestado foi largamente percorrida por dois monges, de 1845 a 1908. O primeiro se chamava João Maria D’Agostini, era italiano de origem. Benzia, curava e não fazia ajuntamento de pessoas nem dormia na casa de ninguém. Veneradíssimo batizou milhares de moradores do sul do Brasil. Desapareceu por volta de 1890.
Em seguida surge outro monge, João Maria de Jesus, nome adotado por Anastás Marcaf, turco de origem. Também percorria o sertão benzendo, curando e batizando. Não juntava gente em volta de si, não dormia nas casas, mas atacava a República. Desapareceu por volta de 1908 e, segundo a população de então, “está encantado no Morro do Taió”.
É um terceiro monge, entretanto, que vai aglutinar o povo do sertão do Contestado e, de alguma forma, levá-los à guerra. Chamava-se José Maria - seu verdadeiro nome era Miguel Lucena e sugeria ser irmão de João Maria. Benzia, curava, batizava e reunia gente ao seu redor lendo, regularmente, o livro do Rei Carlos Magno e seus Doze Pares de França - com seus ensinamentos de guerra. Atacava duramente as autoridades e a República.
Ameaçado pelos coronéis da região do Contestado, o Monge e um grupo de sertanejos deslocaram-se para o Irani, em terras que o Paraná considerava suas, palco do primeiro combate da guerra. A 22 de outubro de 1912, na região denominada Banhado Grande, José Maria e seu grupo são atacados por soldados do Paraná comandados pelo coronel João Gualberto.
Morrem o monge e o coronel.